sábado, 29 de novembro de 2014

Indignação seletiva


  • A história está na “Ditadura Derrotada” – tomo necessário de Élio Gáspari – que muito nos ensina sobre a Terra de Santa Cruz. Logo antes de assinar o famigerado Ato Institucional número 5, que basicamente transformava o país numa ditadura, o então ministro do Trabalho e da Previdência Social, Jarbas Passarinho, desabafou: 

    -    Às favas, senhor presidente, com os escrúpulos de consciência...

    Às favas com os escrúpulos da consciência... é basicamente o que diz todo torcedor quando seu time é favorecido em campo. Levado a extremos, esse peculiar cinismo produz sincericídios peculiares – como o do goleiro Felipe no recente campeonato carioca:

    – Roubado é mais gostoso.

    No lego, lance do pênalti sofrido por Fred contra a CroáciaPois bem, a Copa do Mundo nos ajuda a pensar sobre o Brasil. Pois é um raro momento onde nos sentimos 200 milhões. Ou 180 – vá lá – digamos que 10% não se importem ou torçam contra. Mas o futebol é algo de que há muito nos orgulhamos – e sentimos como nosso – nos representa. Pelé e Ronaldo pós-bola podem ser criticados – mas em campo foram nossos embaixadores.  
    O hino nacional cantado em Itaquera, Brasília, Fortaleza e Belo Horizonte tem sido arrepiante. A corrente elétrica que percorre os estádios quando o hino encurtado da FIFA para – e o estádio continua berrar... contrasta depois com a torcida desorganizada que canta o pouco animado brasileiro-com-muito-orgulho-e-muito-amor. É como se toda a energia se concentrasse ali... 

    -      Gigante pela própria natureeeeeza...  És belo, és forte... impávido colosso...

    Assim que o hino começou em Itaquera, no primeiro jogo da Copa, olhei para o lado. O berro era uníssiono. A sensação era de fazer parte de algo maior. Você não queria que aquilo terminasse.

    – ...e teu futuro espelha essa grandeza! Terra adorada! Entre outras mil és tu Brasil ó pátria amada! Dos filhos deste solo és mãe gentil... pátria amada, BRASIL!

    Esse último verso foi urrado num coro impressionante, um misto de euforia e transe. Tive absoluta certeza de que o arrepio era coletivo. Não havia um olhar seco. Lágrimas pulavam... as pessoas estavam entre felizes e constrangidas. Um breve silêncio se deu. E então veio o xingamento contra a presidente.

    E então, calado, pensei sobre aquela plateia. Havia poucos negros certamente. Alguma elitização, sem dúvida. Nada muito diferente de plateias recentes da seleção. Mas eram entre 50 e 60 mil brasileiros xingando a presidente eleita por eles – quatro anos antes. E isso depois de cantar o hino de forma emocionada.

    O xingamento provocou indignação de muitos que não estavam no estádio. Os 60 mil de Itaquera foram classificados como elite branca de São Paulo, mal-educada e machista. O tiozão corinthiano que estava do meu lado não me pareceu se encaixar nesses parâmetros. E minha impressão era que pelo menos metade do público não era paulista. Mas quem sou eu para discordar de quem tem certeza de tudo. 

    Eu vou a estádio de futebol há quase 40 anos. Nunca vi um estádio educado. Nunca. O palavrão é o idioma do estádio brasileiro há eras - e não vi semelhante indignação quando os alvos foram outros – políticos, cantores ou jornalistas. Isso não quer dizer que xingar alguém – a presidente ou o contínuo – seja certo. É sempre ofensivo e errado – e não tem a ver com gênero ou função. Talvez seja especialmente triste por ter sido no primeiro jogo da Copa no país. Mas soa estranho quando a indignação é seletiva. E a do torcedor – de futebol ou política – parece sempre ser.

    Aquele jogo contra a Croácia foi difícil, com jogadores tensos e adversário tinhoso. E o lance capital foi o pênalti ectoplásmico enxergado pelo japonês Yoshi Nashimura depois que Fred derreteu na área. O lance decidiu a partida – e fui vê-lo em 18 câmeras... para ter certeza que em nenhuma delas houve penal. Fred percebeu o leve toque no ombro - e desabou.

    Pouco acima de minha cadeira (que ficava no setor mais barato do estádio, diga-se), um careca bombado estava especialmente preocupado em puxar o coro anti-Dilma. A cada paralisação ele tentava.  Mas na hora do gol de pênalti – olhei pra trás – e o careca pulava. Não parecia preocupado com o lamento croata. Erros de arbitragem fazem parte do jogo.  Mas se você está xingando a presidente, em nome de uma suposta ética, não deveria se indignar também diante do garfo arbitral?

    Compreenda-se a reação da CBF então - e do Felipão e do Fred - de insitir que foi pênalti: eles estavam de olho no futuro. Boleiro que é boleiro sabe que um erro admitido é pior para as futuras arbitragens. Eles estão, afinal, jogando uma Copa no Brasil com uma baita pressão nas costas. Em suma – Felipão, Fred & Cia atuaram ali de acordo com as regras surdas do futebol – onde vislumbrar o próximo lance é fundamental.

    fred penalti brasil x croacia













    A Copa no Brasil tem sido um barato em vários sentidos – mas é bacana também porque expõe nossas contradições. Traz para a superfície esse brasileiro complexo – capaz de cantar o hino chorando para xingar pseudocivicamente no minuto seguinte. Será que não passamos do tempo em que a vitória vil era necessária para validar a nação? Se a Copa nos mostra a nação que somos – foi saudável lamentar a vitória com garfo. Foi saudável ficar constrangido diante do pênalti fantasma.

    Claro que, como disse o próprio Felipão o Brasil não foi pentacampeão no apito. Mas, shakespearizando Jarbas Passarinho, há mais coisas entre os escrúpulos e a consciência do que supõe a nossa vã filosofia... Em tese, com cinco títulos na lapela, o Brasil já deveria ter grandeza suficiente para dispensar asteriscos. Ou não deveria?

    Depois do suadouro contra o Chile, habemos Colômbia em Fortaleza. O sonho do título em casa ainda é uma miragem mas... faltam se tudo der certo... faltam só três jogos. Pensando isso, apenas a título de teste, responda com sinceridade a dupla de perguntas abaixo:

    1 - Numa final contra  a Argentina, no Maracanã, se o juiz não marcar pênalti claro no Messi no último minuto... você vai ficar chateado?

    2 - E se o pênalti ignorado for no Neymar?
  • por Gustavo Poli


    Jara














    A odisseia durou mais de 120 minutos. Um país parado diante da TV, congelado, frisado, tenso. E, no fim, aliviado. O Brasil ganhou do Chile pela mais ínfima das margens. Um pênalti convertido a mais. E se... tivesse perdido? No que seria transformado o pranto do capitão Thiago Silva? Quantas palavras seriam escritas, ecoadas e repetidas para demonstrar que as lágrimas de Júlio César já eram prenúncio de derrota? O Brasil venceu – e sobreviveu – mas poderia ter perdido. Não seria injusto, nem absurdo. E não teria sido o fim do mundo. Mas talvez parecesse.

    Sobre os ombros dos 23 homens de Felipão repousa uma bigorna. Não é uma bigorna simples. A missão de carregar as expectativas de um país nas costas já seria, por si só, titânica. Mas, no Brasil, carregamos sobrepesos. O complexo de vira-latas rodrigueano foi transformado por cinco títulos - se tornou um peso diferente - virou arrogância, certeza - um estranho complexo de superioridade. O Brasil se sente o pit-bull inconfundível do futebol mundial - um cruzamento de raças feito pra jogar bola. Dentro de campo nos sentimos hegemônicos, donos, senhores - proprietários da supremacia e do encanto. Cada Copa do Mundo é uma oportunidade de chancelar essa superioridade.

    A Copa no Brasil, porém, traz algo mais. Traz a chance de corrigir um pretenso equívoco do destino - de apagar a grande mácula de nosso currículo - nossa maior derrota - ocorrida na única Copa disputada aqui - que produziu um trauma e um fantasma. Imaginemos pois toda essa história - toda essa expectativa - encapsulada em minutos - para decidir se o Brasil continuaria participando da festa em sua casa. Tudo isso concentrado naquele momento em que o futebol deixa de ser coletivo - e vira uma disputa de dois indivíduos. Um cobrador e um goleiro. Você sentiria alguma pressão caminhando com uma bola debaixo do braço - diante de 60 mil presentes e 200 milhões de olhares?

    O pênalti é um exercício de precisão, um tiro ao alvo com um defensor no meio. Em tese, o problema é simples: o cobrador tem que vencer 11 metros de distância e superar o goleiro – que por sua vez tentará impedir que a esfera de couro sintético, chutada em direção imprevista e em velocidade variável, invada uma área de quase 18 metros.

    Em Copas do Mundo, a taxa de sucesso dos goleiros em disputas por penalidades é de 28%. Dos 211 pênaltis cobrados até este domingo em confrontos do gênero – 152 foram convertidos (72,03 %) - já contando aqui os penais de Costa Rica x Grécia. No sábado foram cobrados dez pênaltis no Mineirão – e apenas cinco foram convertidos – 50%. A sabedoria popular diz que pênalti bem batido é aquele que entra – mas essa é uma falácia óbvia. Há penalidades mal batidas que entram – e outras, bem cobradas, que saem por pouco. Pois o drama do batedor está nos limites – quanto mais ele dificultar a vida do goleiro - maior seu risco de errar.

    O pênalti mais bem batido no Mineirão foi cobrado por Aranguiz. Um chute seco, estilo taco em bola de sinuca, no ângulo. Nem se Júlio César saísse antes e pulasse no alto seria capaz de pegar. A pior cobrança também foi chilena – de Diaz – uma varada no meio do gol quase rasteira. Mas Júlio, talvez influenciado pela cobrança anterior (a de Aranguiz), tinha escolhido um lado e não pegou essa.

    Mas qual foi... o segundo pênalti mais bem batido da tarde? Ironia ou não – foi o pênalti que decidiu o jogo. Jara cobrou de forma quase perfeita – no alto – perto da gaveta. E quase resume a ópera. Em pênalti, um milímetro transforma perfeição em desastre.  Um soprinho pra lá fez a bola chutada pelo 18 chileno beijar a trave, cruzar a linha atrás de Júlio César e sair, decretando a eliminação vermelha.

    jara
    O pênalti de Jara lembrou, de certa forma, a cobrança de Romário em 1994 – que bateu na trave... e entrou – para desespero de Pagliuca. Ou o penal de Bellone em 1986 – que bateu na trave, nas costas do goleiro brasileiro Carlos... entrou e fez a regra mudar. As artimanhas do destino – que nos levam a ironizar o acaso – são de difícil leitura. Deus é brasileiro contra a Itália e Chile - mas não contra a França? 

    E se... Bravo tivesse escolhido certo o canto na cobrança de Neymar – e a bola de Jara tivesse entrado pós-trave? Ou antes – se a pancada de Pinilla no travessão tivesse um centímetro a menos de curva? Claro, se cachorro não descomer... há de explodir – diz a sabedoria biquense de Marcelo Barreto. Se tivesse sido assado (e não assim) – estaríamos em depressão súbita – com palavras como “vexame” e “vergonha” frequentando manchetes. A Copa perderia parte da graça. Júlio César, de herói improvável, estaria agora na cruz – com suas lágrimas expostas.

    E por que isso? Porque fazemos questão de associar o sucesso a um jogo de 90 minutos onde detalhes além de qualquer controle podem ditar o resultado? Quem soprou as bolas de Pinilla e Jara? Pergunte ao espelho: por que soaria vergonhoso ser desclassificado pelo bom time do Chile nas oitavas-de-final da Copa?

    É a superpotência do futebol com 1950 no subsconsciente. Esse peso esteve algo disfarçado na fase de grupos. Mas desceu imenso quando a eliminação surgiu no horizonte. Pernas bambearam, insegurança bateu. Foi isso que fez Júlio César se emocionar – fez Thiago Silva chorar – e fez a nação respirar mais aliviada do que eufórica quando o Chile bateu na trave.

    Nas quartas teremos novo encontro com a pressão. E a vitória continuará soando obrigatória- pois olhamos para a Colômbia com aquela sensação de "filho, papai chegou". Isso, claro, é perigoso. O Brasil não fez uma grande partida nessa Copa.  A seleção de hoje não tem uma overdose de talento – é um bom time, não super – com um jovem craque, Neymar, de apenas 22 anos.  E ainda sofre porque dois jogadores que fizeram diferença na Copa das Confederações – Paulinho e Fred – atravessam fases ruins.

    Então... perder faz parte do jogo. Carregar 200 milhões nas costas não é fácil. O destino ajudou até agora. Mas se uma hora deixar de ajudar – isso não vai transformar o país num desastre. Nem vai fazer dos 23 de Felipão responsáveis por uma “tragédia”. Eles querem ganhar mais do que ninguém. E se ganharem – com essa pressão imensa nas costas – talvez mereçam as estátuas planejadas (boa sorte para o escultor que tiver que fazer os cachos do David Luiz).

    penalti jara2 O Brasil que perdeu em 1950 tinha zero títulos mundiais e uma imensa necessidade de afirmação. Se o penta virar hexa no Brasil – o tal fantasma de 1950 irá para o espaço com passagem só de ida. Mas e se não virar?

    O que vimos no Mineirão foi nosso primeiro encontro real com a alternativa. Com a palpável possibilidade de derrota. Quando o chute de Pinilla bateu na trave - o suspiro nacional foi quase audível. Em outras palavras: falar é fácil. Difícil é entrar em campo vestindo amarelo – com 200 milhões de sujeitos jogando na sua conta expressões como “vexame”,  “fracasso” e “vergonha”. E acreditando que o Brasil só perde para si mesmo.

    Tanto se falou sobre a Copa no Brasil - que seria um fiasco, que seria patética, que seria o maior mico jamais concebido... e por ora nada se confirmou. Mais - o futebol jogado dentro de campo foi e continua sendo um sucesso.  As histórias bacanas de solidariedade, diversão e mistura cultural se multiplicam.  Apesar dos muitos problemas pontuais não houve um fracasso estrutural.  Tanto se falou imagina na Copa e tanto se esperou pelo pior – que quando o pior não veio... o discurso catastrofista ficou oco. Ressalvas e elefantes albinos à parte, o mundo curtiu a Copa. Até os EUA embarcaram como nação – o que fez uma profissional do melancismo aparecido – a americana Ann Coulter – conseguir a proeza argumentativa de associar interesse por futebol à decadência de uma nação (é necessário talento para chegar numa asneira desse nível).

    Com tantos gols, tantas chances (talvez por conta do calor a amolecer defesas) e tanta festa - a Copa nos trouxe uma sensação de sucesso - e de vitória fora do campo. Será dureza voltar para o futebol-nosso-de-cada-dia depois desse impacto - pois tudo vai parecer um grande estadual infinito em todas as direções. Mas voltaremos. E estaremos nos sentido um pouco melhores - seja qual for o resultado.

    Antes de criticar as lágrimas de Thiago Silva e Júlio César... vale a reflexão: por que exigimos comportamento sobre-humano daqueles que, eventualmente, crismamos como super-heróis? Hulk, na verdade, atende por Givanildo. É um sujeito de carne, osso e chute forte - mas não pula alto, nem arremessa o goleiro longe.

    Como sempre - a Copa terá uma seleção campeã – e 31 derrotadas. O hexa, se vier, não vai transformar urubu em meu louro, político corrupto em honesto, ineficiência em eficiência, bandido em gente de bem. Nem produzirá milagres. Neymar não vai andar sobre as águas – nem o Murtosa vai virar o Mario Bros.  Se o Brasil ganhar – seremos feliz e alegres por alguns dias – e ampliaremos nosso “direito de zoar” por mais uma geração.

    Mas se a taça não vier - pode ser que seja por um detalhe, um drible, uma sombra. Pode ser que os deuses do futebol deliberem outra verdade. Enquanto cínicos e céticos continuam acreditando no acaso - apesar de tantas e incansáveis evidências em contrário - Jara e Pinilla já estão em Santiago, amaldiçoando cada milímetro de destino e amargando a pior chaga futebolística: a dor do quase.

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