A odisseia durou mais de 120 minutos. Um país parado diante da TV, congelado, frisado, tenso. E, no fim, aliviado. O Brasil ganhou do Chile pela mais ínfima das margens. Um pênalti convertido a mais. E se... tivesse perdido? No que seria transformado o pranto do capitão Thiago Silva? Quantas palavras seriam escritas, ecoadas e repetidas para demonstrar que as lágrimas de Júlio César já eram prenúncio de derrota? O Brasil venceu – e sobreviveu – mas poderia ter perdido. Não seria injusto, nem absurdo. E não teria sido o fim do mundo. Mas talvez parecesse.
Sobre os ombros dos 23 homens de Felipão repousa uma bigorna. Não é uma bigorna simples. A missão de carregar as expectativas de um país nas costas já seria, por si só, titânica. Mas, no Brasil, carregamos sobrepesos. O complexo de vira-latas rodrigueano foi transformado por cinco títulos - se tornou um peso diferente - virou arrogância, certeza - um estranho complexo de superioridade. O Brasil se sente o pit-bull inconfundível do futebol mundial - um cruzamento de raças feito pra jogar bola. Dentro de campo nos sentimos hegemônicos, donos, senhores - proprietários da supremacia e do encanto. Cada Copa do Mundo é uma oportunidade de chancelar essa superioridade.
A Copa no Brasil, porém, traz algo mais. Traz a chance de corrigir um pretenso equívoco do destino - de apagar a grande mácula de nosso currículo - nossa maior derrota - ocorrida na única Copa disputada aqui - que produziu um trauma e um fantasma. Imaginemos pois toda essa história - toda essa expectativa - encapsulada em minutos - para decidir se o Brasil continuaria participando da festa em sua casa. Tudo isso concentrado naquele momento em que o futebol deixa de ser coletivo - e vira uma disputa de dois indivíduos. Um cobrador e um goleiro. Você sentiria alguma pressão caminhando com uma bola debaixo do braço - diante de 60 mil presentes e 200 milhões de olhares?
O pênalti é um exercício de precisão, um tiro ao alvo com um defensor no meio. Em tese, o problema é simples: o cobrador tem que vencer 11 metros de distância e superar o goleiro – que por sua vez tentará impedir que a esfera de couro sintético, chutada em direção imprevista e em velocidade variável, invada uma área de quase 18 metros.
Em Copas do Mundo, a taxa de sucesso dos goleiros em disputas por penalidades é de 28%. Dos 211 pênaltis cobrados até este domingo em confrontos do gênero – 152 foram convertidos (72,03 %) - já contando aqui os penais de Costa Rica x Grécia. No sábado foram cobrados dez pênaltis no Mineirão – e apenas cinco foram convertidos – 50%. A sabedoria popular diz que pênalti bem batido é aquele que entra – mas essa é uma falácia óbvia. Há penalidades mal batidas que entram – e outras, bem cobradas, que saem por pouco. Pois o drama do batedor está nos limites – quanto mais ele dificultar a vida do goleiro - maior seu risco de errar.
O pênalti mais bem batido no Mineirão foi cobrado por Aranguiz. Um chute seco, estilo taco em bola de sinuca, no ângulo. Nem se Júlio César saísse antes e pulasse no alto seria capaz de pegar. A pior cobrança também foi chilena – de Diaz – uma varada no meio do gol quase rasteira. Mas Júlio, talvez influenciado pela cobrança anterior (a de Aranguiz), tinha escolhido um lado e não pegou essa.
Mas qual foi... o segundo pênalti mais bem batido da tarde? Ironia ou não – foi o pênalti que decidiu o jogo. Jara cobrou de forma quase perfeita – no alto – perto da gaveta. E quase resume a ópera. Em pênalti, um milímetro transforma perfeição em desastre. Um soprinho pra lá fez a bola chutada pelo 18 chileno beijar a trave, cruzar a linha atrás de Júlio César e sair, decretando a eliminação vermelha.
O pênalti de Jara lembrou, de certa forma, a cobrança de Romário em 1994 – que bateu na trave... e entrou – para desespero de Pagliuca. Ou o penal de Bellone em 1986 – que bateu na trave, nas costas do goleiro brasileiro Carlos... entrou e fez a regra mudar. As artimanhas do destino – que nos levam a ironizar o acaso – são de difícil leitura. Deus é brasileiro contra a Itália e Chile - mas não contra a França?
E se... Bravo tivesse escolhido certo o canto na cobrança de Neymar – e a bola de Jara tivesse entrado pós-trave? Ou antes – se a pancada de Pinilla no travessão tivesse um centímetro a menos de curva? Claro, se cachorro não descomer... há de explodir – diz a sabedoria biquense de Marcelo Barreto. Se tivesse sido assado (e não assim) – estaríamos em depressão súbita – com palavras como “vexame” e “vergonha” frequentando manchetes. A Copa perderia parte da graça. Júlio César, de herói improvável, estaria agora na cruz – com suas lágrimas expostas.
E por que isso? Porque fazemos questão de associar o sucesso a um jogo de 90 minutos onde detalhes além de qualquer controle podem ditar o resultado? Quem soprou as bolas de Pinilla e Jara? Pergunte ao espelho: por que soaria vergonhoso ser desclassificado pelo bom time do Chile nas oitavas-de-final da Copa?
É a superpotência do futebol com 1950 no subsconsciente. Esse peso esteve algo disfarçado na fase de grupos. Mas desceu imenso quando a eliminação surgiu no horizonte. Pernas bambearam, insegurança bateu. Foi isso que fez Júlio César se emocionar – fez Thiago Silva chorar – e fez a nação respirar mais aliviada do que eufórica quando o Chile bateu na trave.
Nas quartas teremos novo encontro com a pressão. E a vitória continuará soando obrigatória- pois olhamos para a Colômbia com aquela sensação de "filho, papai chegou". Isso, claro, é perigoso. O Brasil não fez uma grande partida nessa Copa. A seleção de hoje não tem uma overdose de talento – é um bom time, não super – com um jovem craque, Neymar, de apenas 22 anos. E ainda sofre porque dois jogadores que fizeram diferença na Copa das Confederações – Paulinho e Fred – atravessam fases ruins.
Então... perder faz parte do jogo. Carregar 200 milhões nas costas não é fácil. O destino ajudou até agora. Mas se uma hora deixar de ajudar – isso não vai transformar o país num desastre. Nem vai fazer dos 23 de Felipão responsáveis por uma “tragédia”. Eles querem ganhar mais do que ninguém. E se ganharem – com essa pressão imensa nas costas – talvez mereçam as estátuas planejadas (boa sorte para o escultor que tiver que fazer os cachos do David Luiz).
O Brasil que perdeu em 1950 tinha zero títulos mundiais e uma imensa necessidade de afirmação. Se o penta virar hexa no Brasil – o tal fantasma de 1950 irá para o espaço com passagem só de ida. Mas e se não virar?
O que vimos no Mineirão foi nosso primeiro encontro real com a alternativa. Com a palpável possibilidade de derrota. Quando o chute de Pinilla bateu na trave - o suspiro nacional foi quase audível. Em outras palavras: falar é fácil. Difícil é entrar em campo vestindo amarelo – com 200 milhões de sujeitos jogando na sua conta expressões como “vexame”, “fracasso” e “vergonha”. E acreditando que o Brasil só perde para si mesmo.
Tanto se falou sobre a Copa no Brasil - que seria um fiasco, que seria patética, que seria o maior mico jamais concebido... e por ora nada se confirmou. Mais - o futebol jogado dentro de campo foi e continua sendo um sucesso. As histórias bacanas de solidariedade, diversão e mistura cultural se multiplicam. Apesar dos muitos problemas pontuais não houve um fracasso estrutural. Tanto se falou imagina na Copa e tanto se esperou pelo pior – que quando o pior não veio... o discurso catastrofista ficou oco. Ressalvas e elefantes albinos à parte, o mundo curtiu a Copa. Até os EUA embarcaram como nação – o que fez uma profissional do melancismo aparecido – a americana Ann Coulter – conseguir a proeza argumentativa de associar interesse por futebol à decadência de uma nação (é necessário talento para chegar numa asneira desse nível).
Com tantos gols, tantas chances (talvez por conta do calor a amolecer defesas) e tanta festa - a Copa nos trouxe uma sensação de sucesso - e de vitória fora do campo. Será dureza voltar para o futebol-nosso-de-cada-dia depois desse impacto - pois tudo vai parecer um grande estadual infinito em todas as direções. Mas voltaremos. E estaremos nos sentido um pouco melhores - seja qual for o resultado.
Antes de criticar as lágrimas de Thiago Silva e Júlio César... vale a reflexão: por que exigimos comportamento sobre-humano daqueles que, eventualmente, crismamos como super-heróis? Hulk, na verdade, atende por Givanildo. É um sujeito de carne, osso e chute forte - mas não pula alto, nem arremessa o goleiro longe.
Como sempre - a Copa terá uma seleção campeã – e 31 derrotadas. O hexa, se vier, não vai transformar urubu em meu louro, político corrupto em honesto, ineficiência em eficiência, bandido em gente de bem. Nem produzirá milagres. Neymar não vai andar sobre as águas – nem o Murtosa vai virar o Mario Bros. Se o Brasil ganhar – seremos feliz e alegres por alguns dias – e ampliaremos nosso “direito de zoar” por mais uma geração.
Mas se a taça não vier - pode ser que seja por um detalhe, um drible, uma sombra. Pode ser que os deuses do futebol deliberem outra verdade. Enquanto cínicos e céticos continuam acreditando no acaso - apesar de tantas e incansáveis evidências em contrário - Jara e Pinilla já estão em Santiago, amaldiçoando cada milímetro de destino e amargando a pior chaga futebolística: a dor do quase.
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